A minha Força Aérea - T-6. Aprendi a voar este avião em Salamanca


E vivi lá oito gloriosos meses!


Salamanca tem a mais bela Plaza Mayor de Espanha



Aprendi a voar o T-6 em 1962/1963 em Salamanca, na Base Aérea de Matacán, Real Força Aérea Espanhola, Ejército del Aire.


Terminado o curso básico de pilotagem em Aveiro, no meu caso de Maio a Agosto de 1962, no Chipmunk, os pilotos da Força Aérea eram sempre recambiados para Sintra onde se seguia a aprendizagem final, antes do brevetamento (entrega das asas de piloto já formado) em T-6.

Devido à sobrecarga de alunos pilotos em Sintra nos primeiros anos da guerra do Ultramar a nossa progressão ficou em suspenso.

Foi então decidido que dez alunos pilotos desse curso, P1/62, fossem colocados na “academia do T-6” em Salamanca ao abrigo de um acordo para a formação de pilotos portugueses pelos Espanhóis, onde já tinham estado recentemente outros tantos pilotos da nossa Academia Militar,

E lá nos meteram num avião que poderia ter andado na Guerra Civil de Espanha ou na 2ª Grande Guerra, o JU 52, rumo a Salamanca.




A Catedral Nova de Salamanca e a Ponte Romana sobre o Rio Tormes



Á nossa espera estava uma muito simpática recepção com os oficiais superiores da Base Aérea e os nossos futuros instrutores, num beberete ao ar livre as mesas muito bem postas e com uma bela merenda. Não estávamos á espera de tanta deferência...


Mas também não durou muito!


Quando olharam bem para as nossas fardas e descobriram que não eramos os oficiais da Academia da Força Aérea que estavam á espera, como os outros que lá tinham estado antes, mas simples soldados, milicianos, quase paisanos (dois eram já Sargentos) fomos rapidamente encaminhados dali para fora.


E adeus beberete!


Quem não comeu, comesse…


Pois… começou menos bem a nossa estadia em Salamanca.



E teve segundos e terceiros capítulos.







O T-6 Texan era conhecido no Ejército del Aire como E-16 e C-6





Começaram por nos alojar numa camarata com outros 60 espanholitos da nossa idade, 21 anos, que iriam começar também o curso. Mas para a integração Ibérica finalmente se concretizar, as nossas camas estavam espalhadas no meio daqueles olés todos.

De imediato os Viriatos em que nos transformámos logo ali, formámos um quadrado, bem ao jeito do Santo Condestável Nuno Álvares Pereira, com as nossas oito camas (os outros dois foram para a messe dos Sargentos) quatro cabeças contra quatro cabeças e preparámonos para a guerra! 







Isto durou uns dias. Sempre que chegávamos das aulas, ao fim da tarde, lá tínhamos que reconstruir “o quadrado português” que era desfeito assim que saiamos da camarata.


Não foi fácil convencer nuestros hermanos, até que ao fim de uns dias perceberam…



Aljubarrota à vista!




Eis, então, que chega o 1º Domingo passado na base.

Eram 6 da manhã e um Sargento, daqueles de 1962, estava subitamente ao meu lado aos berros:


- A pied! (levanta-te). A pied!



Assim acordado à bruta, num Domingo?! Estremunhado, destapei ligeiramente a cabeça.


Como?!


Tínhamos que ir á Missa. E era oficial. Em Espanha todos os militares iam á Missa ao Domingo. Todos?!

O Sargento de dia não nos conseguiu levantar.

Nem pensar!

E foi chamar o Oficial de Dia:

“los portugueses não se querem levantar para ir à Missa!”

E lá veio o Oficial de Dia, que seria mais tarde um dos nossos instrutores de voo, muito alto, que se postou mesmo em frente a mim, aos berros também:


- A pied!



Como?!

Ficámos na cama e ninguém nos chateou mais.

Nunca mais!


Os Oficiais iam à Missa de missal na mão… e a Sargentada e soldadesca atrás, tudo em fila. E nós...

Na cama!

- Los portugueses son uns tios muy cojonudos!

 

Foi o que se ouviu o resto do dia na base…


 
Entretanto o Outouno ia dando lugar ao Inverno e o frio era muito.

Vários de nós tínhamos vindo de Angola e de Moçambique e de vidas muito melhores. Pelo menos água quente tínhamos sempre nas nossas casa e aqui era coisa que não existia.

Nesse inverno de 1962/63 eu só conseguia tomar banho ao fim de semana, numa Pensão em Salamanca.

Normalmente, na Base, lavava só um membro por dia, já perto da temperatura de congelação. A temperatura mínima desse Inverno, em Salamanca, andou sempre entre os -10/-20ºC!


A camarata também não tinha isolamento nem aquecimento.


Depois de muito protestarmos, lá nos organizaram um banho colectivo na Base.


Estranho?


Nem por isso: entrámos em fila indiana, todos nus, numa dependência que tinha um murete estreito, de uns 40cm de altura, no centro daquilo e que ia dando a volta, em "U" por ali fora até à saída.


Do murete saiam vários esguichos de água que nos lavavam “as partes” à medida que íamos andando de pernas abertas, uns atrás dos outros. E de cima outros esguichos, tudo de água quente!


Como é de ver foi o primeiro e último banho que nos deram naquela linha de montagem. Nunca soubemos se aquilo era mesmo para gente ou para alguma espécie de animal que por lá criassem. 


O que a Espanha mudou!



Universidade de Salamanca






As fardas que tínhamos também eram as normais.

Para os trópicos...

E o fato de voo era em algodão fino.

Não tínhamos nenhum abrigo, casaco ou sobretudo. Só o colete de sarja por cima da camisa de terylene (fibra sintética da altura).

Num dia de mais frio tomámos uma grande decisão colectiva. Ninguém se pisgou!


Fomos todos para Salamanca, para as lojas de casacos de cabedal. Cada um escolheu o que quis. Uns escolheram blusões em pele preta com zips cromados e tachas a condizer outros com menos ou nenhuns enfeites, mas não havia dois iguais. E passámos a andar assim fardados, para grande espanto dos militares espanhóis e para raiva do nosso Embaixador em Madrid que espumava ao telefone com o nosso colega Sargento mais graduado com as constantes queixas que lhe chegavam da Base.


Nada a fazer... Era o frio!



Museu del Aire Quatro Vientos, Madrid


Uma bela tarde aterra na Base Aérea de Matacán uma comitiva de Oficiais Superiores portugueses.

 

O encontro deve ter sido histórico para aqueles senhores.


Nós os 10 impecavelmente fardados de blusões de cabedal preto com tachas cromadas e outros enfeites, a fazer-lhes continência e eles a acharem que estavam na Broadway, num qualquer musical…


 

Numa das voltas da visita, um deles, fardado com aqueles casacos da farda de cerimónia de boa lã, cheiinho de reconcofes bordados em alto-relevo, muito quentinhos e vistosos, banhinho quente tomado, água de colónia e after shave, vira-se de repente e pergunta, esgazeado de todo:


 

- Mas o que raio vem a ser isto? Que farda é esta?

- Temos frio!

 

Foi a única resposta. E convincente.


 

- E ainda vamos ter de escolher outra vestimenta qualquer para enfrentar os muitos graus Centígrados negativos que sofremos em voo com aqueles fatos de algodão fininho e sem luvas...


 

Silêncio total. E nunca mais ninguém nos disse nada. Passou a ser, obviamente, fardamento legal até à Primavera seguinte.


 

Mas no fim dessa semana recebemos uns fatos de voo fantásticos que, sem nenhum exagero, nos faziam parecer o boneco da Michelin, tão almofadados e isolados eram. E luvas de cabedal até ao cotovelo. Acabara-se o frio, pelo menos em voo. 







Inicialmente tivemos aulas á parte, as teóricas, para nos familiarizarmos com a língua. O curso foi dado, como é óbvio, em Castelhano.

Foi a primeira vez que os jovens pilotos oriundos de África viram neve.

Em Salamanca ainda éramos uns 4. Um era mesmo preto e outro imitava… (ambos angolanos)


Um dia, em plena aula de Meteorologia, logo por acaso, o professor reparou que uns quantos olhavam para fora sem prestarem atenção nenhuma ao que ele dizia. E era um excelente professor! Quando percebeu que nunca tínhamos visto neve acabou ali a aula para as “crianças” poderem ir brincar para a rua…


Porque recusámos a comida da messe, intragável, passámos a comer numa cantina civil, um boteco, à nossa custa, claro. Só nós os dez, em grandes almoçaradas também intragáveis que por vezes eram substituídas por latas de leite condensado. Latas essas que em dias de maior desespero tinham a característica de conseguirem atravessar o vidro da janela do bar, em voo rápido mas controlado.

Um dia até um prato cheio de não sei quê com muito molho vermelho-acastanhado veio na minha direcção.

O prato sozinho, no ar!

Ia para o meu parceiro do lado, numa zanga por causa da beleza de uma irmã que ninguém conhecia mas tinha de ter a honra defendida. Se não me agachasse o conteúdo gorduroso não teria ficado esparramado na parede como ficou, o molho todo a escorrer por ali abaixo…


Como exemplo do exótico cardápio da cantina, digo-vos que um dia calhou-nos uma extraordinária sobremesa:


- Um prato de sobremesa atafulhado com lindíssimas rodelas de laranja a flutuar em azeite de oliveira. É ou não uma maravilha?




Tive como instrutor o Tenente Cervera, a quem chamavam o meu irmão mais velho, provavelmente pelo seu normal bom comportamento… Tinha só umas 4500 horas de voo, em instrução em T-6.

Este Senhor, ensinou-me a fazer a 1ª inspecção exterior do avião com muita segurança. Nenhum pormenor ficou por verificar. Por exemplo, ao chegar à roda de cauda, sacou do "instrumento" e explicou-me:

- Aqui mija-se!


E aviou-se. E eu tive de me aviar também… a pensar no que diria o pessoal da manutenção.









Este meu instrutor ao constatar que "los Portugueses" tinham aptidão para tal, tentou largar-nos em voo em formação, 4 aviões juntos, com descolagem dois a dois também. Mas como o curso anterior dos outros Portugueses que ali chegaram muito mal preparados não o conseguira, a coisa não foi autorizada.

Era um desprestígio para os Oficiais que não tinham sido largados. Eram Pilotos da Academia Militar que tinham feito o curso do avião base Chipmunk diluído ao longo de 3 anos de muitas teóricas em vez dos 3 meses seguidos de práticas diárias que nós os Milicianos fazíamos em Aveiro.

Convém lembrar aqui que estávamos em plena era Franquista, Salazarista, Guerra do Ultramar, etc., de férrea disciplina militar... (coisa que, pelo que aqui já se percebeu, não se aplicava muito a nós…)

Pois o meu Instrutor não esteve com meias medidas. Arranjou outros 3 pilotos portugueses e largou-nos à revelia das ordens superiores, chefiando ele a formação dos 4 aviões mas comigo a pilotar o seu avião (no mesmo avião) e os 3 outros em voo solo.




Imagem de 2007 do Aeroporto de Salamanca, onde tudo isto se passou há 55 anos...

Facto consumado, o Major Comandante da Esquadra resignou-se e no dia seguinte, nomeou-me chefe da 2ª parelha, agora a voar solo e fomos novamente os mesmos 4 para o ar, ele no avião de um dos outros já lagados, na frente da formação.

E quando o Major resolve inopinadamente dar uma de tresloucado e desata a fazer todos os disparates possíveis, incluindo esconder-se com o asa dele dentro de uma nuvem, eu, o responsável pela outra parelha, achei que o melhor era estar quieto e tentar não o perder de vista. O homem devia sair alguma vez da nuvem…

Quando a coisa acalmou e ele de lá saiu, juntei-me a ele com o meu asa e acabámos o voo com um violento e prolongado dog-fight (aviões em fila indiana a ter de seguir o chefe em todas as acrobacias que ele entender fazer).

Por não ter ido atrás do chefe para dentro da nuvem nem quando fez os disparates, achei que tinha terminado ali a minha carreira militar. Mas ninguém me obrigaria a fazer tal coisa.

Após a aterragem, o Major enfiou uma tremenda cara de pau e eu o rabo entre as pernas. E foi assim que ele abriu a porta da Esquadra.

Antes de entrar, virou-se calmamente para nós os quatro, com o mesmo triste e sério semblante e disse pausadamente:


- Muy bien.


Este foi o nosso debrieffing... nem mais uma palavra.


Era oficial. Estávamos largados em formação e todos nós iríamos ser largados!



A minha Asa de Piloto do Ejercito del Aire Espanhol



Mas há mais... Voo nocturno. Também foi difícil a autorização para sermos largados nesta modalidade, pelas mesmas razões que disse quanto ao voo em formação.
Depois do treino em altitude, numa noite de luar, devia fazer a seguir 3 voltas de pista antes de hipoteticamente ser largado. Mas não, com o meu instrutor não era assim. Nunca era assim. A Lua entretanto pôs-se.

Noite preta como breu. Uma grande confusão tudo aquilo... Ao fim da primeira volta de pista o homem desiste, apeia-se e diz-me: "boa sorte!" e pira-se. E agora o que é que eu faço à minha vida?

Foi o meu primeiro voo nocturno a solo.
Anos mais tarde, já depois de ter voado o T-33 e o F-86F, eis que chega a minha vez de ir para a Guerra do Ultramar, como voluntário.



O meu T-6 em Vila Cabral, 1968


Fui em 1967 para Moçambique e voei este avião durante dois anos no Distrito do Niassa, a partir da capital, Vila Cabral.

Estive ali destacado também voluntariamente oito meses seguidos.

Acabei os dois anos de comissão no Ultramar e o meu serviço na Força Aérea (sete anos) em Nova Freixo e passei à disponibilidade em Fevereiro de 1969.



Estava na hora de tentar a outra aviação.





(Actualizada em 15 de Julho de 2018)







4 comentários:

  1. Gostei muito.Faz-me recordar tempos idos em que também voei neste avião na BA7-S.Jacinto.

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  2. Fiz o Chipmunk em sintra e depois o T6 em s. jacinto.
    Belos tempos

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  3. Recordo com Saudade o barulho dos motores de TODOS os T6 da linha da frente a fazerem Ponto Fixo ,nas frias manhãs de Inverno em S.Jacinto.

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  4. RECORDO COM MUITA SAUDADE OS DOIS ANOS EM MOÇAMBIQUE E DOS PONTOS FIXOS ÁS 6 DA MANHA EM MUEDA , NOS T-6 E NAS DO-27 , NUMA SESSÃO DE ACROBACIA EN DO-27 COM LOOPINGS E TOUNOUS E UMA VRILL QUE ESCAPAMOS MILAGROSAMENTE (DO-27 -A5) ,MAS O QUE DAVA PICA ERA LEVAR O MOTOR DO T6 Á POTÊNCIA MAXIMA PERMITIDA CLÁRO ! APÓS FINAL DA COMISSÃO VOLTAR Á BA1 E AOS QUERIDOS "LOS PANCHOS" E DAÍ PARA A TAP COMO TMA DE REACTORES

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